sábado, 12 de fevereiro de 2011

Liturgia Cristã

Para nós cristãos, nossa páscoa é Cristo, na qual se selou definitivamente a aliança entre o divino e o humano. Sua vida, morte-ressurreição e dom do Espírito são o referencial salvífico maior, central, de toda a história da salvação, como vem atestado nos escritos do segundo testamento. Pois, a partir deste mistério (mistério pascal), o pecado e a morte não têm mais vez, estão destruídos e, por isso, temos a certeza de que, em Cristo, nosso fim é também vitorioso. Nele passamos definitivamente da escravidão do pecado e da morte para a liberdade da graça superabundante e da vida plena.
  Pois bem, antes de ser entregue à morte, a exemplo do que foi instituído para os israelitas por ocasião da saída do Egito, como vimos acima (cf. Ex 12,14), Jesus também nos instruiu, deixando-nos um memorial, memorial agora de sua (e nossa) páscoa, síntese de toda a sua vida e sua missão. Pegando o pão e, depois, o cálice com vinho, deu graças, partiu e deu aos seus discípulos dizendo: Tomai e comei, isto é meu corpo entregue. Tomai e bebei, isto é meu sangue derramado, o sangue da nova aliança. Façam isto em memória de mim. (cf. Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,14-20). Fazei isto... “Fazer”, aqui, tem a ver com ação, entrar jogo do rito e, neste jogo, assimilar o sentido contido no rito (que é o mistério pascal: Jesus se entregando por nós, por amor) para transformá-lo em vida no dia a dia.
O rito deixado por Jesus foi assumido pelos seus discípulos, recebendo (com o passar dos tempos) vários nomes: fração do pão, ceia do Senhor, eucaristia, oferta, missa, divina liturgia. Nossos irmãos orientais chamam a celebração memorial da ceia pascal do Senhor de “divina liturgia”. Nós falamos em “liturgia da missa”.
Por que “liturgia”? Essa palavra é significativa. Por isso foi adotada pelos cristãos como título do que temos de mais sagrado, a saber, do nosso memorial pascal. Razão porque creio ser muito necessária uma achega ao sentido profundo que esta palavra encerra. A partir daí, com certeza, podemos perceber algo encantador e comprometedor, quando se fala em Liturgia.
A palavra “liturgia” é uma palavra de origem grega. E qual seria o sentido mais originário dela, na língua grega? Significa serviço público, cargo público, ou antes, prestação de serviço à comunidade. Se você, por exemplo, participa de um mutirão comunitário, o grego diria que você está participando de uma “liturgia”. O apóstolo Paulo, usando o termo nesse sentido, chama de “liturgia” o trabalho (serviço) de recolher esmolas e socorrer a comunidade cristã de Jerusalém (cf. Rm 15,27; 2Cor 9,12).
Ora, se com esse pano de fundo lemos as Escrituras, algo muito interessante vem à tona. A saber, podemos aí perceber e compreender o próprio Deus como o mais sábio na arte da liturgia, isto é, na arte da prestação de serviço ao povo. Ele é a própria arte de prestar serviço ao povo, criando-o e salvando-o, Ele é o “liturgo” por excelência. A este Deus, invisível, mas percebido como intensamente presente e atuante na história do povo, a tradição judaica deu um nome: Javé, Deus, Senhor! E a tradição cristã, depois, passou a caracterizá-lo também como “mistério”.
A criação, toda ela, é vista e sentida como uma esplêndida obra do mistério de Deus, um maravilhoso presente, em favor da humanidade, uma imensa manifestação da misteriosa “liturgia” do Criador. Como todo o “trabalho” que pacientemente Deus realizou no primeiro testamento, no sentido de o povo reentrar no caminho da vida, da justiça e da paz. Exemplos (como já vimos em parte): Encontrou-se pessoalmente com os patriarcas, salvou o povo de Israel da escravidão, instruiu-lhe o memorial pascal, fez aliança com ele, deu-lhe de comer, matou sua sede, constituiu líderes e suscitou profetas no meio do povo, inspirou instituições rituais (formas memoriais celebrativas da sua misteriosa e atuante presença na história), assentou o povo numa terra, e assim por diante.
E, a certa altura da História, na plenitude dos tempos, Deus nos prestou um serviço ainda maior, a saber: Presenteou-nos com seu próprio Filho que se tornou para nós o Caminho, a Verdade e a Vida, o nosso Salvador, com uma proposta que significa a garantia mais certa daquela vida plena que todos nós sonhamos.
Lendo os evangelhos, percebemos que toda a vida de Jesus, passo a passo, foi uma vida só de serviço em favor das pessoas ou, como diriam os gregos, uma grande “liturgia”. Ele mesmo disse: “O Filho do homem não veio para ser servido mas para servir e dar a vida pela redenção de muitos” (cf. Mc 10,45); ou: “Estou no em vosso meio como quem serve” (Lc 22,27); ou: “Dei-vos o exemplo... o servo não é maior do que o senhor” (Jo 13,15-17).
Pela sua total solidariedade com o ser humano, na sua encarnação, vida, morte e ressurreição, ele mergulha de cabeça no abismo da realidade humana, no mar da nossa existência cheia de anjos e demônios, até na morte (cf. Fl 2,5-11: optou por ser pobre e, assim, solidário com os pobres!). Ele mesmo, na total obediência ao Pai, cura os doentes, consola as pessoas, acolhe os pecadores, abençoa as crianças, denuncia as tiranias opressoras, anuncia um novo ano da graça de viver na alegria da liberdade....
Fiel à vontade do Pai, deu tudo de si pela causa maior que é a causa da justiça, da liberdade, da vida. Foi fiel ao compromisso com esta causa até o fim. E sua ressurreição é a marca definitiva de que este é o culto que mais agradou a Deus, a melhor “liturgia”, digamos. Pelo mistério pascal, repetindo o que há pouco dissemos, selou-se a aliança definitiva e eterna entre o divino e o humano. Nele, Deus nos prestou um serviço salvador, o maior, em favor de toda a humanidade.
E mais, no fim das contas, Deus ainda nos deu o dom do Espírito (outra grande “liturgia”: obra em favor da humanidade!), pelo qual nos tornamos corpo de Cristo, filhos de Deus, família de Deus, povo de Deus, Igreja, raça escolhida e nação santa, povo sacerdotal, habitação do Altíssimo Senhor, colaboradores diretos do Criador no cuidado do paraíso chamado planeta terra. Formando um só corpo em Cristo (cf. 1Cor 12,12-31) pelo batismo, foi-nos garantida a verdadeira dignidade humana e nos foi dada uma nova “cidadania” sobre este planeta terra, a “cidadania” do eterno. Como, aliás, cantamos na Noite de Natal: “No momento em que vosso Filho assume nossa fraqueza, a natureza humana recebe uma incomparável dignidade: ao tornar-se ele um de nós, nos tornamos eternos”.
Tocamos, pois a Fonte, a saber, a Trindade santa na sua arte consumada de prestação de serviço a toda a humanidade. Não só a tocamos, mas nos percebemos tocados por ela, sobretudo na ação ritual deixada por Jesus como memorial de sua (e nossa) páscoa.
Por isso que, com razão, nossos irmãos orientais chamam esta ação de “divina liturgia”, e nós a chamamos de “liturgia da missa’, “liturgia eucarística”. Pois nela, se faz presente Aquele que, unido ao Pai e ao Espírito Santo, num gesto ímpar de amor-serviço, operou (e opera) pelo mistério pascal a salvação de toda a humanidade.
Notemos que o Catecismo da Igreja Católica identifica, com razão, a liturgia como “obra da Trindade”, continuada hoje na Igreja como celebração e vida (cf. n. 1077 -1112).

Frei José Ariovaldo da Silva, OFM


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